Assunto: Clamor dos Professores de Quissanga, entre o dever patriótico e o abandono institucional
Nós, professores do distrito de Quissanga, província de Cabo Delgado, que
ao longo de vários anos servimos com dedicação e compromisso à causa nacional
de combate ao analfabetismo, vimos por meio desta carta aberta lançar um apelo
urgente, humano e institucional a todas as entidades acima mencionadas.
Durante anos, resistimos a todas as intempéries que assolam o distrito:
desde secas, ciclones, ausência de estradas e de infraestruturas mínimas, até à
total falta de condições básicas de vida e trabalho. Mesmo assim, jamais
abandonámos o nosso dever. Somos servidores públicos com espírito patriótico,
que continuaram a trabalhar mesmo nas zonas de guerra, com o objectivo de
garantir educação às crianças moçambicanas.
Com o recrudescimento do terrorismo em Quissanga a partir de 2017, fomos
forçados, em Janeiro de 2020, a abandonar o distrito e a vila sede tomada pelos
terroristas, perdendo todos os nossos bens. Deslocámo-nos, com recursos
próprios, para zonas mais seguras dentro do país e da província, onde
continuámos a trabalhar, respondendo ao apelo nacional. Nunca fomos apoiados
financeiramente pelo Estado nestas deslocações forçadas. A nossa dedicação foi
reconhecida pelas escolas e comunidades de acolhimento, como provam as nossas
classificações de desempenho.
Quando, em 2022, o Governo distrital nos orientou a regressar a Quissanga para
assegurar o direito à educação das crianças retornadas, voltámos novamente com
fundos próprios. No entanto, esse retorno foi selectivo: apenas professores
(homens e jovens) foram obrigados a regressar. Os dirigentes governamentais e
demais funcionários do Estado permaneceram em zonas seguras, alegando ausência
de condições mínimas no distrito.
Em 2023, registou-se o retorno de todo o aparato governamental e
funcionários públicos criando a esperança de estabilidade. Contudo, no início
de 2024, o distrito voltou a ser alvo de ataques. A vila sede foi novamente
ocupada por terroristas, tendo sido assassinados o Comandante Distrital da
Polícia da República de Moçambique, outros membros da corporação e civis
indefesos. Mais uma vez, perdemos todos os nossos bens e fomos obrigados a
procurar zonas seguras, novamente com fundos próprios e sem qualquer apoio do
Estado.
Desesperados, os funcionários públicos do distrito solicitaram uma
audiência ao Secretariado do Estado na Província de Cabo Delgado, sem sucesso.
Deixámos uma carta formal a expressar o nosso esgotamento psicológico,
económico e emocional, manifestando também o pedido de transferência dos
funcionários com mais de 5 anos de serviço em Quissanga. Apesar da gravidade da
situação, nunca obtivemos resposta formal. A anterior Ministra e o
Vice-Ministro da Administração Estatal e Função Pública tomaram conhecimento do
assunto, tendo reunido com os funcionários do distrito em Maio e Julho, mas
nada foi feito.
Enquanto esperávamos uma resposta institucional, fomos alocados
temporariamente a escolas das zonas seguras, onde trabalhámos até ao final de
2024. Contudo, nas vésperas da abertura do ano lectivo de 2025, fomos
surpreendidos por uma carta do Serviço Distrital de Educação, Juventude e
Tecnologia (SDEJT) de Quissanga, que ordenava o nosso retorno ao distrito, e
informava às escolas acolhedoras que não deviam contar connosco.
Pedimos uma reunião com o SDEJT para esclarecer as condições do retorno.
Para nosso espanto, fomos informados de que apenas os professores deveriam
regressar, sem o acompanhamento dos directores distritais, técnicos, chefes de
repartições ou mesmo do Administrador do Distrito, os quais permaneceriam em
Pemba alegando falta de infraestruturas para trabalhar em Quissanga.
Reunimos com o Administrador distrital e manifestámos a nossa indignação,
exigindo um retorno conjunto de todos os funcionários do Estado, como
demonstração de que o distrito está seguro. A nossa solicitação foi rejeitada.
Fomos ameaçados de suspensão salarial e eventual perda de vínculo caso não
regressássemos.
Procurámos audiência junto ao Governador e ao Secretário de Estado da
Província, sem qualquer sucesso. Pedimos intervenção da Direcção Provincial da
Educação, que nos reuniu, juntamente com o SDEJT, mas transferiu a
responsabilidade da decisão ao Administrador distrital.
Pedimos ainda intervenção da Associação Nacional dos Professores (ANAPRO) e
da Organização Nacional dos Professores (ONP). A ANAPRO intermediou uma reunião
com o SDEJT, mas mais uma vez os nossos apelos foram ignorados e as ameaças
mantidas.
Com medo de perder os salários e os empregos, um pequeno número de
professores regressou ao distrito, mesmo sem condições mínimas de docência, sem
supervisão pedagógica, nem dignidade. Os restantes, pressionados, mantiveram-se
nas zonas seguras.
Em 19 de Fevereiro de 2025, como temíamos, ocorreu mais um ataque
terrorista, desta vez no posto administrativo de Bilibiza. Os professores que
haviam retornado, temendo pela vida, fugiram novamente.
Ainda assim, no mês de Junho, o SDEJT efectivou cortes salariais
arbitrários contra mais de 100 professores que não retornaram, com descontos
entre 5.000 a 15.000 meticais dependendo da categoria do docente, de forma
totalmente desumana e sem critério justo. Seguidas com ameaça de desligamento
automático do sistema para quem não regressar.
Fundamentação Legal
Reiteramos que as nossas reivindicações têm respaldo na Constituição da
República de Moçambique, nomeadamente nos artigos:
Art. 35 – Direito à igualdade e não discriminação;
Art. 88 – Direito à educação;
Art. 106 – Direito à segurança no emprego e à remuneração justa;
Art. 109 – Dever do Estado em proteger os trabalhadores.
Invocamos ainda o disposto no (EGFAE), particularmente:
Art. 2 – Princípios da função pública (legalidade, igualdade,
estabilidade);
Art. 64 – Transferência de funcionários por conveniência de serviço ou a
pedido;
Art. 78 – Dever do Estado em garantir condições humanas e dignas de
trabalho.
E, ainda, a Lei do Trabalho (Lei n.º 23/2007, de 1 de Agosto):
Art. 11 – Direitos fundamentais do trabalhador à segurança e integridade
física.
Diante deste quadro dramático, colocamos as seguintes questões:
Por que razão apenas os professores são obrigados a regressar a Quissanga?
Por que os dirigentes e outros funcionários do distrito não acompanham este
retorno?
Por que recusam transferir, legalmente, os funcionários com mais de 5 anos
de permanência em Quissanga?
Que tipo de apoio é garantido aos funcionários que regressam?
Há, de facto, segurança em Quissanga?
Que assistência o Estado presta às famílias dos funcionários mortos pelo
terrorismo?
Qual é a base legal usada pelo SDEJT de Quissanga para executar cortes
salariais nestas condições?
Será que o Governo Provincial, o Conselho de Ministros, os deputados, a
sociedade civil e a imprensa desconhecem o que está a acontecer em Quissanga?
Alguém acredita realmente que não queremos trabalhar?
Afinal, vamos parar onde?
A nossa palavra de ordem permanece firme:
“Nós só retornaremos a Quissanga quando todos os funcionários públicos do
distrito, incluindo o administrador, também retornarem como prova de que o
distrito está verdadeiramente em paz.” (Mozanorte)
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