Quissanga: 85 Professores choram em “Carta Aberta” as autoridades

Assunto: Clamor dos Professores de Quissanga, entre o dever patriótico e o abandono institucional

Nós, professores do distrito de Quissanga, província de Cabo Delgado, que ao longo de vários anos servimos com dedicação e compromisso à causa nacional de combate ao analfabetismo, vimos por meio desta carta aberta lançar um apelo urgente, humano e institucional a todas as entidades acima mencionadas.

Durante anos, resistimos a todas as intempéries que assolam o distrito: desde secas, ciclones, ausência de estradas e de infraestruturas mínimas, até à total falta de condições básicas de vida e trabalho. Mesmo assim, jamais abandonámos o nosso dever. Somos servidores públicos com espírito patriótico, que continuaram a trabalhar mesmo nas zonas de guerra, com o objectivo de garantir educação às crianças moçambicanas.

Com o recrudescimento do terrorismo em Quissanga a partir de 2017, fomos forçados, em Janeiro de 2020, a abandonar o distrito e a vila sede tomada pelos terroristas, perdendo todos os nossos bens. Deslocámo-nos, com recursos próprios, para zonas mais seguras dentro do país e da província, onde continuámos a trabalhar, respondendo ao apelo nacional. Nunca fomos apoiados financeiramente pelo Estado nestas deslocações forçadas. A nossa dedicação foi reconhecida pelas escolas e comunidades de acolhimento, como provam as nossas classificações de desempenho.

Quando, em 2022, o Governo distrital nos orientou a regressar a Quissanga para assegurar o direito à educação das crianças retornadas, voltámos novamente com fundos próprios. No entanto, esse retorno foi selectivo: apenas professores (homens e jovens) foram obrigados a regressar. Os dirigentes governamentais e demais funcionários do Estado permaneceram em zonas seguras, alegando ausência de condições mínimas no distrito.

Em 2023, registou-se o retorno de todo o aparato governamental e funcionários públicos criando a esperança de estabilidade. Contudo, no início de 2024, o distrito voltou a ser alvo de ataques. A vila sede foi novamente ocupada por terroristas, tendo sido assassinados o Comandante Distrital da Polícia da República de Moçambique, outros membros da corporação e civis indefesos. Mais uma vez, perdemos todos os nossos bens e fomos obrigados a procurar zonas seguras, novamente com fundos próprios e sem qualquer apoio do Estado.

Desesperados, os funcionários públicos do distrito solicitaram uma audiência ao Secretariado do Estado na Província de Cabo Delgado, sem sucesso. Deixámos uma carta formal a expressar o nosso esgotamento psicológico, económico e emocional, manifestando também o pedido de transferência dos funcionários com mais de 5 anos de serviço em Quissanga. Apesar da gravidade da situação, nunca obtivemos resposta formal. A anterior Ministra e o Vice-Ministro da Administração Estatal e Função Pública tomaram conhecimento do assunto, tendo reunido com os funcionários do distrito em Maio e Julho, mas nada foi feito.

Enquanto esperávamos uma resposta institucional, fomos alocados temporariamente a escolas das zonas seguras, onde trabalhámos até ao final de 2024. Contudo, nas vésperas da abertura do ano lectivo de 2025, fomos surpreendidos por uma carta do Serviço Distrital de Educação, Juventude e Tecnologia (SDEJT) de Quissanga, que ordenava o nosso retorno ao distrito, e informava às escolas acolhedoras que não deviam contar connosco.

Pedimos uma reunião com o SDEJT para esclarecer as condições do retorno. Para nosso espanto, fomos informados de que apenas os professores deveriam regressar, sem o acompanhamento dos directores distritais, técnicos, chefes de repartições ou mesmo do Administrador do Distrito, os quais permaneceriam em Pemba alegando falta de infraestruturas para trabalhar em Quissanga.

Reunimos com o Administrador distrital e manifestámos a nossa indignação, exigindo um retorno conjunto de todos os funcionários do Estado, como demonstração de que o distrito está seguro. A nossa solicitação foi rejeitada. Fomos ameaçados de suspensão salarial e eventual perda de vínculo caso não regressássemos.

Procurámos audiência junto ao Governador e ao Secretário de Estado da Província, sem qualquer sucesso. Pedimos intervenção da Direcção Provincial da Educação, que nos reuniu, juntamente com o SDEJT, mas transferiu a responsabilidade da decisão ao Administrador distrital.

Pedimos ainda intervenção da Associação Nacional dos Professores (ANAPRO) e da Organização Nacional dos Professores (ONP). A ANAPRO intermediou uma reunião com o SDEJT, mas mais uma vez os nossos apelos foram ignorados e as ameaças mantidas.

Com medo de perder os salários e os empregos, um pequeno número de professores regressou ao distrito, mesmo sem condições mínimas de docência, sem supervisão pedagógica, nem dignidade. Os restantes, pressionados, mantiveram-se nas zonas seguras.

Em 19 de Fevereiro de 2025, como temíamos, ocorreu mais um ataque terrorista, desta vez no posto administrativo de Bilibiza. Os professores que haviam retornado, temendo pela vida, fugiram novamente.

Ainda assim, no mês de Junho, o SDEJT efectivou cortes salariais arbitrários contra mais de 100 professores que não retornaram, com descontos entre 5.000 a 15.000 meticais dependendo da categoria do docente, de forma totalmente desumana e sem critério justo. Seguidas com ameaça de desligamento automático do sistema para quem não regressar.

Fundamentação Legal

Reiteramos que as nossas reivindicações têm respaldo na Constituição da República de Moçambique, nomeadamente nos artigos:

Art. 35 – Direito à igualdade e não discriminação;

Art. 88 – Direito à educação;

Art. 106 – Direito à segurança no emprego e à remuneração justa;

Art. 109 – Dever do Estado em proteger os trabalhadores.

Invocamos ainda o disposto no (EGFAE), particularmente:

Art. 2 – Princípios da função pública (legalidade, igualdade, estabilidade);

Art. 64 – Transferência de funcionários por conveniência de serviço ou a pedido;

Art. 78 – Dever do Estado em garantir condições humanas e dignas de trabalho.

E, ainda, a Lei do Trabalho (Lei n.º 23/2007, de 1 de Agosto):

Art. 11 – Direitos fundamentais do trabalhador à segurança e integridade física.

Diante deste quadro dramático, colocamos as seguintes questões:

Por que razão apenas os professores são obrigados a regressar a Quissanga?

Por que os dirigentes e outros funcionários do distrito não acompanham este retorno?

Por que recusam transferir, legalmente, os funcionários com mais de 5 anos de permanência em Quissanga?

Que tipo de apoio é garantido aos funcionários que regressam?

Há, de facto, segurança em Quissanga?

Que assistência o Estado presta às famílias dos funcionários mortos pelo terrorismo?

Qual é a base legal usada pelo SDEJT de Quissanga para executar cortes salariais nestas condições?

Será que o Governo Provincial, o Conselho de Ministros, os deputados, a sociedade civil e a imprensa desconhecem o que está a acontecer em Quissanga?

Alguém acredita realmente que não queremos trabalhar?

Afinal, vamos parar onde?

A nossa palavra de ordem permanece firme:

“Nós só retornaremos a Quissanga quando todos os funcionários públicos do distrito, incluindo o administrador, também retornarem como prova de que o distrito está verdadeiramente em paz.” (Mozanorte)

 

 

 

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